Nove de dezembro de 1989. Enquanto uma TV transmite imagens ao vivo da queda do muro de Berlim, Hanna Flanders fala ao telefone, fumando nervosamente. "Agora eu me mato", diz ela. Em uma das mãos ela segura o fone e na outra uma garrafinha de arsênico.
A queda do muro não deixa entusiasmada, ao contrário. "Isso tudo é uma traição", balbucia ela, "não consigo entender". Hanna Flanders é escritora e se considera militante. Ela rompeu relações com a Rowohlt, sua editora na Alemanha Ocidental, em virtude do fracasso nas vendas. Na Alemanha Oriental, ao contrário, seus livros continuam a ser regularmente publicados, mas cada vez menos lidos. Para ela, um mundo inteiro vem abaixo. Ou pelo menos, o que ainda restava dele. Hanna Flanders chegou praticamente ao seu limite psíquico, físico e econômico. Mas ainda não irá , ainda não.
Hanna Flanders se desfaz do apartamento em Munique e muda-se para Belim, onde o reencontro com o filho e, depois, com o ex-amante na editora Volk und Welt é um verdadeiro fiasco. O apartamento reservado para escritores, no qual ela hospeda uma leitora, fica bem fora da cidade e está em um estado deplorável. Amigos tentam ajudá-la, mas ela resolve voltar para o sul da Alemanha. Uma visita aos pais, em Nuremberg, reabre velhas feridas, assim como o reencontro, ao acaso, com seu ex-marido Bruno, que se tornou um alcoólatra irrecuperável, incapaz de oferecer-lhe qualquer tipo de apoio.
De volta a Munique, Hanna não encontra mais forças para tentar um novo recomeço. Depois de desmaiar em frente a um restaurante, os médicos fazem um diagnóstico avassalador, viciada e sofrendo de vasoconstrição, ela terá de parar de fumar imediatamente. Ao frequentar uma clínica de desintoxicação, ela volta a encontrar seu grande amigo Ronald, que está de partida para Viena.
Em nenhum lugar para ir, Oskar Roehler relata a história de sua mãe, a escritora Gisela Elsner, que se suicidou em 1992, e declara seu suicídio como uma "morte heroica". Gisela Elsner tinha se tornado uma figura tão marginal, que passara a ver-se ela própria, como "intocável", como pária da sociedade cultural. Na verdade, exceto pelo seu furioso romance de estrela, Gisela Elsner nunca chegou a ser uma grande escritora. A editora Volk und Welt a cortejava muito mais por razões políticas que por razões literárias. membro do Partido Comunista Alemão, talvez Gisela tenha pressentido, e logo começado a perceber, que o fim da Alemanha Oriental seria também o fim do seu sucesso profissional.
Esse filme é de uma intensidade quase torturante e mostra a autora como uma mulher extremamente contraditória. antes de partir de Munique, ela compra um casaco Dior em uma elegante loja, onde é conhecida como cliente assídua, mas não tem escrúpulos em comentar o fim da Alemanha Oriental de maneira acusatória: "Seremos devorados pela sociedade de consumo" profetiza ela. Quando ela própria se vê forçada a abrir mão de privilégios e viver alguns dias a realidade do socialismo no decadente apartamento da editora reservado a escritores situado em um deprimente bairro de periferia, Hanna não aguenta uma única noite e foge.
O trabalho de Oskar Roehler foi recebido com entusiasmo pela crítica alemã. A revista Spiegel descreve Nenhum lugar para ir como o mais esplêndido retrato de mulher produzido pelo cinema alemão nos últimos dez anos: "Mantendo-se distante de qualquer tendência dominante no meio cinematográfico, trata-se de uma obra irritantemente singular, estranha e monomaníaca, mas de uma beleza pungente.
Por mais incomum que tenha sido o destino dessa escritora, sua biografia é bem característica para a historia alemã contemporânea. Ela retrata uma mulher sensível, dividida entre fronts ideológicos diferentes e fala das contradições entre utopia política e vida real. No fim, filme e protagonista se recolhem no isolamento da clínica, que, também simbolicamente, se transforma mais e mais em um pesadelo. Durante um de seus surtos, Hanna Flanders arranca da parede um enorme relógio, como se com isso pudesse parar o tempo ou fugir do seu curso. A sensação de claustrofobia se torna ainda maias dolorosa. A última cena, no momento de seu suicídio, simboliza também a fuga de uma vida em confinamento, cujo fracasso está indissoluvelmente ligado a essa época. Nenhum lugara para ir também se contrasta com todos os filmes eufóricos sobre a reunificação dos dois estados alemães.
Oskar Roehler já havia realizado dois filmes que vão muito além da costumeira e medíocre mania de sucesso. Mas é apenas em nenhum lugar para ir que seu estilo encontra uma história que acompanha a maneira como é contada.
Oskar ousou ao relatar os últimos dias da vida de sua mãe, a escritora Gisela Elsner. Hoje quase desconhecida, nas décadas de 1960 a 1970, ela foi uma das figuras mais brilhantes do universo literário alemão. Com seus dois romances iniciais, Die Riesenzwerge (1964) e Der Nachwuchs (1968), "conquistou o título de não conivente, aliás, mais do que isso, de crítica radical da mentalidade de seus concidadãos contemporâneos, soturnos e mal-humorados", conforme escreveu o jornal FAZ (Franfurter Allgemine Zeitung). No início dos anos 1980, começou a sua decadência; as ásperas críticas da imprensa,a briga com a editora Rowhlt e o crescente isolamento social. No fim, a queda do muro de Berlin parece ter causado também a destruição da carapaça psíquica que ela havia construído para si; em 1992 deu fim à sua vida atirando-se pela janela de uma clínica.
"Uma mulher má, esta Elsner, na verdade, uma maldição", escreveu Christa Rotzoll, em 1977, no jornal Süddeutsche Zeitung. é essa maldição que seu filho coloca nesse filme preto e branco artificial, estilizado. Falar dos últimos dias de vida de uma pessoa significa abreviar, tornar mais denso, cristalizar. O primeiro ponto importante de cristalização do filme é Hannelore Elsner (sem qualquer parentesco com Gisela Elsner), que, com exemplar coragem, exibe seu rosto inteiro, envelhecido, sem maquiagem. Apenas um cigarro se interpõe permanentemente entre ela e o olho da câmera . Mesmo assim, podemos ler em seu rosto, como em um livro; rugas como páginas impressas, fugazes contrações em torno dos lábios como capítulos; um abrir de pálpebras como uma formulação muito bem-sucedida, que permanece na cabeça do leitor. Mas a impressão do todo e tudo menos evidente; concordância e negação, frio e calor, possibilidade de tocar ou não tocar, estão separados apenas por um sopro.
A dramaturgia do filme fica mais densa onde pode e deve. A sequência inicial mostra uma mulher em um chalé sofisticado, que, tomada pelo desespero ao ouvir as notícias da queda do muro na TV, corre até uma butique famosa para comprar um extravagante manto. Paramentada como casaco e uma enorme peruca, Hanna Flanders (o nome da personagem que representa Elsner) ainda arrisca uma ida a Berlim, mas nem o encontro com o amante, nem com o filho (aqui o personagem Roehler é caricaturalmente representado pelo ator Lars Rudolph), tampouco com um garoto de programa proporciona alívio. Continuando mais para o leste, ao bairro de Marzahn, após um encontro em um bar segue-se outro encontro com uma clássica família da Alemanha Oriental, que aloja Hanna na cama das crianças onde, finalmente, consegue dormir um bom sono. Mas ainda há um confronto com os pais e outro com o ex- marido Bruno (personagem que representa o pai de Oskar, Klaus Roehler, por muitos anos revisor da editora Luchterhand),e, por último, a síncope em plena Avenida Maximiliano,na cidade de Munique, uma clínica, o diagnóstico e o fim.
Seria errado supor que o filme Nenhum lugar para ir consiga colocar o dedo em apenas uma ferida pessoal. Gisela Elsner talvez tenha sido sempre uma pessoa muito pública, muito artificial. "Você está me confundindo com minha maquiagem", teria dito certa vez ao ex-marido, mas o filho consegue não apenas também da realidade em que se movimenta.
Finalmente, um filme alemão consegue lidar com o período do fim da RDA (República Democrática Alemã) por meio de uma perspectiva do lado ocidental, quando a esquerda se esvaí em declarações de manifesta impotência, os jornais folhetinescos da Alemanha Ocidental nada mais faziam que dissecar as conexões dos intelectuais do lado oriental e o conservadorismo da era do chanceler Kohl comemorava o feliz retorno às origens. E, finalmente, é possível perceber um pouco da depressão, do choque (o reverso da euforia geral) que a queda do muro causou no lado ocidental da Alemanh.a
Roehler acompanha a figura artística de Hanna como sismógrafo através de dois anos de história alemã e, subitamente, esta mulher não mais parece intocável, muito pelo contrário. Gisela Elsner deu ao seu terceiro e famoso romance o nome de Berührungsverbot (Proibido contato, em tradução livre), e Roehler foi capaz de romper essa proibição e se aproximar de uma pessoa escondida e mascarada. O fato de não usar sentimentalismo )salvo na cena com o ex-marido, que também é seu pai e a quem dedica o filme), mas sim avançar fazendo suas descobertas, é admirável.
Título original: Die Unberührbare
Direção e roteiro: Oskar Roehler
Elenco: Hannelore Elsner, Vadim Glowna, Jasmin Tabatabai, Lars Rudolph, Michael Gwisdek, Nina Petri, Tonio Arango, Charles Regnier, Helga Göring
Duração: 100 minutos
Ano: 2000
Países de origem: Inglaterra, França, Macedônia
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